....No caminho do cabo de S. Vicente, porém, da Vila do Bispo para diante, o cenário mudou, e tive diante de mim a charneca, rasa, vasta, grandiosa. O silêncio era completo, o calor intenso, a solidão desesperada, o horizonte insondável, a atmosfera movediça, com cambiantes opalinos, entre o céu azulado e a terra verde gris.
Mais adiante já avistei o mar, recortando em toda a minha frente com um traço duro o contorno do promontório; descobri logo a esquerda um cintilante ponto branco, surgindo de negra mancha, que eram as muralhas de Sagres com a sua torre muito caiada; depois, galgada uma pequena ondulação de terreno, que de longe se não percebia, surgiu la ao fundo o convento do cabo de S. Vicente.
Ao chegar, dali a boa meia hora, uma grande decepção me esperava!
Encontrei um troço de vândalos do ministério das obras públicas, que, capita-neados por um espanhol (parece que ainda há poucos empregados públicos portugueses), e sob pretexto de construirem uma nova torre para o farol, haviam, em menos de um ano, deitado tudo a terra. Tudo não: ainda lá estavam algumas paredes exteriores, e o refeitório, porque dele precisavam para traba-lhar ao abrigo.
Ainda lá estavam também umas muralhas velhas para o lado da terra, e arrumados a elas da banda de dentro, do lado do mar, uns casebres, que tudo fora o antigo quartel e reduto da pequena guarnição, que defendia os pobres frades das incursões dos piratas. Esta parte tinha até então escapado por pertencer ao ministério da guerra, e este trazer os seus hunos entretidos por outros sítios.
Da velha igreja, cujas paredes exteriores-conservaram, e de parte dos claustros, haviam já feito, os tais vândalos, pousadas para si, as quais depois seriam a morada dos faroleiros, para quem tencionavam preparar ainda mais habitações em todo o restante edifício. Da grandeza da obra feita e projetada conclui que é aquilo destinado para viveiro ou escola de faroleiros, pois que não creio que seja precisa tanta casa para acomodação dos homens unicamente empregados em acender aquele facho.
Se o exterior da igreja ficou, o interior esse foi todo saqueado. Os azulejos, que eram preciosos, e deviam datar da reedificação de 1606, desapareceram com-pletamente, levados em caixotes por ordem superior (foi o que me disseram lá) não se sabe para onde. Revolveram e profanaram as sepulturas, e até, para o desacato ser completo, uma caveira bem conservada, que apareceu com os seus longos cabelos amarelados incorruptos, até essa foi removida dali, mandada de presente para Sagres a um amigo do tal espanhol! Este mesmo m’o disse....
O
Conde de Villa Franca e a Inquisição
ANSELMO
BRAAMCAMP FREIRE
Lisboa
– Impressa Nacional -1899
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